Avaliação educacional brasileira na década de 1980: o campo entre duas abordagens

Regilson Maciel Borges e José Carlos Rothen

O artigo analisa a configuração do campo científico da avaliação educacional no Brasil na década de 1980, identificando os agentes que o constituíam e as suas contribuições teóricas sobre a temática da avaliação. Realizou-se uma pesquisa de caráter bibliográfica e documental, associada às estratégias dos estudos bibliométricos e à análise de conteúdo.

Os resultados mostram a participação de 19 pesquisadores brasileiros no processo de desenvolvimento do campo, cujas contribuições teóricas apontam para duas principais abordagens de avaliação: uma que se fundamenta principalmente na mensuração dos resultados e outra que defende prioritariamente a participação nos processos avaliativos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo analisa a configuração do campo da avaliação educacional no Brasil na década de 1980, tendo como ponto de partida a identificação de autores brasileiros que contribuíram com a construção do campo e as suas respectivas contribuições teóricas sobre a temática em questão.

Foi nos anos 1980 que a avaliação educacional assumiu um caráter mais sistemático no cenário educacional brasileiro, isso graças à implantação das primeiras experiências de avaliação das instituições brasileiras de ensino superior (ROTHEN; BARREYRO, 2011) e de algumas pesquisas avaliativas pioneiras sobre o desempenho do rendimento escolar do ensino básico (GATTI; VIANNA; DAVIS, 1991; VIANNA, 1991; 1995; 2002). De acordo com Gatti (2014, p. 12) essas experiências “contribuíram para a formação de uma base de conhecimentos em avaliação educacional no Brasil”. Contudo, cabe salientar que as discussões em torno da avaliação em nosso contexto, são registradas desde a década de 1930, quando o Estado passou a se interessar pela medida-avaliação (FREITAS, 2007). Essa identificação entre medida e avaliação foi dominante durante os anos 1960 (SOUSA, 2005) e anos 1970 (CALDERÓN; BORGES, 2013b), período em que a maioria das atividades avaliativas se associavam à aplicação de testes objetivos, sendo “caracterizada pela predominância daquilo que se convencionou chamar de visão tecnicista da avaliação” (CALDERÓN; BORGES, 2013b, p. 180).

O destaque da avaliação educacional na década de 1980 fez o período ser reconhecido por alguns autores como o “momento da proposta”, caso de Barreyro e Rothen (2011), ou ainda, como “construção da agenda da avaliação”, como se refere Almeida Júnior (2005) ao tratar do processo de formação das políticas de avaliação da educação superior no Brasil. Foi nesse período que começou uma reflexão teórica mais aprofundada em torno da avaliação educacional no país, com o surgimento da análise da dimensão política da avaliação, quando pesquisadores brasileiros interessados na temática passaram a desenvolver referenciais alternativos ao modelo de avaliação tecnicista existente até aquele momento (CALDERÓN; BORGES, 2013a). De modo que foi somente a partir daquele momento que a avaliação adquiriu características de cunho mais qualitativo e participativo nas suas formulações, favorecida, principalmente, pela introdução de uma análise de caráter mais político e sociológico decorrente dos questionamentos em torno das práticas e modelos de avaliação implementados na época.

Nesse momento se destacam os trabalhos de Pedro Demo com suas ideias iniciais sobre uma prática de avaliação participante e qualitativa, que visava uma educação transformadora, também Ana Maria Saul com sua proposta democrática de avaliação emancipatória para reformulação de cursos e programas educacionais, Menga Lüdke com seu olhar sociológico sobre os fenômenos avaliativos e sua defesa por uma sociologia da avaliação educacional, Cipriano Carlos Luckesi com sua proposta de ultrapassagem do autoritarismo que, por vezes, tem marcado a avaliação escolar, e Léa Depresbiteris com seu olhar inovador em torno de uma avaliação da aprendizagem participativa na formação profissional.

Entretanto, apesar do surgimento dessa linha de análise crítica do papel da avaliação, nota-se que ainda é constante, no período, a presença de estudos com forte viés quantitativista, destacando-se os estudos sobre a construção, validação e qualificação técnica de instrumentos de medidas elaborados por Heraldo Marelim Vianna, os trabalhos sobre a avaliação do rendimento dos alunos realizados por Heraldo Marelim Vianna e Bernardete Gatti, as análises sobre os exames vestibulares desenvolvidas por Heraldo Marelim Vianna, Sérgio Costa Ribeiro e Adolpho Ribeiro Netto, e as apreciações em torno dos indicadores da produção científica da pós-graduação brasileira tratadas por Simon Schwartzman e Cláudio de Moura Castro.

A análise desse movimento teórico permitiu o delineamento de duas abordagens de avaliação – a avaliação como resultado e a avaliação como processo – refletem as duas grandes posições teóricas a respeito da avaliação educacional desenvolvida na década de 1980 no Brasil, por estudiosos interessados nas questões relacionadas à avaliação, que foram considerados, neste trabalho, como os principais agentes que contribuíram para a estruturação do campo e defendem e põem em prática fundamentos dos conceitos mais gerais que dão sustentação a própria existência do campo.

A abordagem de avaliação baseada em resultados apresenta basicamente estudos de cunho quantitativo sobre o rendimento escolar dos alunos que são mensurados por meio de testes de conhecimentos, tal como os aplicados nos exames vestibulares. Essa linha de estudos que relaciona avaliação e resultados se subdivide em dois outros enfoques, os que tratam diretamente a questão da avaliação como mensuração e outro que discutem de modo crítico a avaliação enquanto diagnóstico da realidade educacional. A outra abordagem de avaliação baseada em processos é marcada pela presença de estudos de cunho qualitativo que analisam a literatura da avaliação e propõe metodologias para a avaliação educacional. Nessa abordagem se defende a participação de todos os envolvidos e interessados nos processos avaliativos. Essa linha histórica que relaciona avaliação como processo também pode ser subdividida em dois enfoques, um que teoriza sobre a temática da avaliação educacional tendo como referência a literatura da área, e outro que traz proposições de práticas avaliativas vivida por seus autores na implementação de programas de avaliação da aprendizagem e na avaliação de programas educacionais.

A identificação dessas duas abordagens de avaliação – resultado e processo – a partir da análise da produção teórica de agentes que discutem a temática da avaliação educacional no Brasil nos anos 1980, confirmam a hipótese levantada na pesquisa, a de que foi nesse período que se constituíram as bases das duas principais concepções de avaliação educacional que orientaram as políticas de avaliação implementadas no país a partir da década de 1990 e seguintes, ao se enfatizar: ora uma concepção de avaliação com viés formativo/emancipatório, como defendeu o PAIUB/1993, ora uma concepção da avaliação como regulação/controle, como instaurada pelo ENC/Provão/1995, ou ainda as duas concepções concomitantemente, como apresentada pelo SINAES/2004 em seu processo de implantação, que defendia a avaliação institucional emancipatória como processo de autoconhecimento institucional, mas que no decorrer dos anos, precisamente a partir de 2008, assistiu a retomada de ferramentas regulatórias com a criação de índices e ranqueamentos.

Essas duas correntes de avaliação também mostram que o campo da avaliação educacional brasileiro na década de 1980 foi habitado por autores de diferentes matizes epistemológicas, que em sua maioria, tratavam da avaliação na sua vertente de testes e indicadores quantitativos, com destaque para as produções de Heraldo Marelim Vianna, Adolpho Ribeiro Netto, Sérgio Costa Ribeiro, Simon Schwartzman e Claudio de Moura Castro. Contrapondo-se a esse viés quantitativista presente na avaliação, alguns autores como Pedro Demo, Menga Lüdke, Ana Maria Saul, Cipriano Carlos Luckesi e Léa Depresbiteris, ancorados numa abordagem de avaliação qualitativa e participativa, passaram a desenvolver referenciais teóricos alternativos ao modelo de avaliação classificatório e excludente predominante no período. Isso tudo contribui para a criação de um sistema de relações nos quais os agentes se tornam detentores de um capital científico fundado no conhecimento e no reconhecimento (BOURDIEU, 2004a), cujo poder consiste na imposição de uma definição da ciência, que se revela nas posições epistemológicas que buscam justificar as estratégias colocadas em ação (BOURDIEU, 1983), assim como também servem para colocar em descrédito os defensores de outras posições.

A pesquisa mostra ainda que ser partidário de uma das abordagens de avaliação, não torna o agente participante de uma das abordagens excludente da outra, mas revela o caráter de complementaridade presente nos conceitos gerais que dão sustentação a própria existência do campo científico. A partir disso compreende-se que o campo da avaliação educacional brasileiro da década de 1980 se encontrava em processo de constituição, e por isso não é clara a existência de grupos institucionais (universidades, associações, grupos de pesquisa, etc.) de avaliação educacional separados e solidificados, sendo comum que muitos autores frequentassem, concomitantemente, as diferentes abordagens de avaliação existentes (resultado e processo), e nelas expressassem suas posições e ideias sobre questões específicas da avaliação.

A ideia de complementaridade constitui boa parte da lógica de funcionamento do campo brasileiro da avaliação educacional nos anos 1980. A exposição da lógica de funcionamento do campo científico a partir da relação de complementaridade presente nas ideias dos diferentes autores que discutem a temática da avaliação no período não exclui alguns dos pressupostos que constituem o campo, tais como concorrência, competições, lutas e disputas que sustentam a própria existência do campo e estimulam o seu funcionamento, mesmo porque complementaridade não quer dizer harmonia, uma vez que neste jogo há os que ganham e os que perdem. No caso específico do campo brasileiro da avaliação educacional dos anos 1980, tudo ocorria ao mesmo tempo, de maneira complexa e dinâmica, o que nos possibilita, inclusive, identificar quem nele estava entrando e quais as posições assumidas no decorrer do processo de pertencimento desse campo.