O regime militar, os direitos humanos e a igreja (1972 – 1986)

Egberto Pereira dos Reis José Carlos Rothen
O presente artigo tem como finalidade abordar a postura da Igreja Católica, diante do regime militar e dos direitos humanos. A nossa pesquisa tem como fonte principal a Revista Eclesiástica Brasileira (REB) no período entre 1972 a 1986. Inicialmente a Igreja apoia o golpe cívico/militar e depois parte dela denuncia as violações de direitos humanos por parte do regime. Assim, identificamos tendências conservadoras e progressistas na instituição eclesial, travando guerras de posição segundo a concepção de Gramsci.

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Considerações Finais

Tanto Michael Löwy (2000) quanto Leonardo Boff (1981) concordam que, a partir dos anos 60, houve mudança de postura diante do subdesenvolvimento, causador de pobreza na América Latina. Postura essa que não foi feita por teólogos, mas por cristãos, que fazem uma nova leitura da realidade e sugerem mudanças. A Teologia da Libertação nada mais é do que a reflexão crítica dessas novas posturas dos cristãos frente aos problemas do subdesenvolvimento e da dependência dos países ricos.11 Nesse sentido, Gustavo Gutiérrez corrobora este pensamento, dizendo:
“Foi nesse contexto que surgiu e amadureceu a teologia da libertação. Ela não poderia ter surgido antes de um certo desenvolvimento do movimento popular e da maturidade de sua práxis histórica de libertação. Essas lutas constituem o lugar de um novo modo de ser do homem e mulher na América Latina e, por isso mesmo, de um novo modo de viver a fé e o encontro com o Pai e os irmãos” (GUTIÉRREZ, 1975, p. 279).
Se antes a teologia era legitimadora de sistemas vigentes, agora passa a fazer uma análise crítica da própria realidade social. Para que isso aconteça, é necessário assimilar um conteúdo político das análises históricas e sociais.
“Para falar teologicamente delas, precisamos, previamente, apropriar-nos de um conhecimento adequado, caso contrário incorremos simplesmente em ignotatio elenchi. Para isso o teólogo precisa se adestrar na leitura de textos analíticos das várias ciências positivas e histórico-sociais. Emerge um novo dialogante para a teologia, as ciências do homem e da sociedade. Sobre a leitura científica e crítica se faz a interpretação teológica e ética” (BOFF, L, 1981, p. 24).
No entanto, a teologia reflete, junto com a comunidade, o que fazer diante de determinadas questões que emergem ao longo da caminhada. O “que fazer”, chamamos de pastoral que, de fato, é a práxis refletida posteriormente. Movimento que se torna dialético, isto é, a teologia se alimenta de uma fonte popular e histórica, reflete, elabora e retorna à base, dando sustentação para a prática pastoral. É da reflexão teológica que suscita a prática pastoral, com fundamentação anterior.
Dessa forma, a pastoral se torna coerente com sua teologia e assim compreendemos por que, na América Latina, ocorre um fenômeno diferente, como observamos nas páginas da REB. É uma pastoral imbuída e voltada a questões sociais pertinentes à contemporaneidade, que assola o continente e é coerente com um discurso cristão, sem dissonância.
“A incidência na pastoral da Igreja se faz notar nas várias práticas de muitas Igrejas periféricas em seu empenho na defesa dos direitos humanos, especialmente dos pobres, na denúncia das violências do sistema capitalista e neocapitalista, na constituição das comunidades de base, onde o povo expressa, alimenta e articula sua fé com as realidades da vida que os oprimem” (BOFF, L, 1981, p. 40). Existe, por parte dos teólogos da libertação, a preocupação da teologia tornar-se uma práxis, e isto só acontece mediante a pastoral que compreende a ação, o compromisso com o outro, como forma de propor e promover mudanças na sociedade.” (GUTIÉRREZ, 1975).
A análise política, na visão da Teologia da Libertação, está intimamente ligada à ação pastoral. É pela política que se torna possível o bem comum, apregoado pela Igreja, como forma de vida digna e justa. A ação política do cristão é fundamentada na noção de que a vida e o mundo não podem estar alheios ao compromisso cristão. É simplesmente impossível separar os atos humanos, inclusive a ação cristã, da prática política, pois o não posicionar-se político é uma atitude política. A vida é política no entender da Teologia da Libertação, dessa maneira, não existe neutralidade política, pois a aparente neutralidade é, na verdade, uma participação política passiva. A denúncia que se faz é que, em nome de neutralidade, a “Igreja não se intromete” em questões políticas, seja como manutenção dos status quo, isto é, torna-se legitimadora de sistemas, por vezes perversos (BOFF, L, 1981), seja por acomodação, para viver em uma zona de conforto. A suposta neutralidade da Igreja, como denuncia Gutiérrez (1975), é uma forma de manter interesses e privilégios.
Oficialmente12, a Igreja pronunciou-se a favor desta prática, como sendo coerente com a vida cristã.
“A política é uma maneira exigente – se bem que não seja a única – de viver o compromisso cristão, ao serviço dos outros. Sem resolver todos os problemas, naturalmente, a mesma política esforça-se por fornecer soluções, para as relações dos homens entre si. O seu domínio é vasto e abrange muitas coisas, não é porém, exclusivo; e uma atitude exorbitante que pretendesse fazer da política algo de absoluto, tornar-se-ia um perigo grave. Reconhecendo muito embora a autonomia da realidade política, esforçar-se- ão os cristãos, solicitados a entrarem na ação política, por encontrar uma coerência entre as suas opções e o Evangelho e, dentro de um legítimo pluralismo, por dar um testemunho, pessoal e coletivo, da seriedade da sua fé, mediante um serviço eficaz e desinteressado para com os homens”(OCTOGESIMA ADVENIENS nº 46).
Os intelectuais da REB entenderam que, de fato, é missão dos cristãos interessar-se por política, pois este é o caminho pelo qual a justiça, a liberdade, a igualdade, os direitos humanos, os valores fundamentais da pessoa humana são implantados como valores evangélicos. A luta pelos direitos humanos se dá, devido a um novo modelo de Igreja. Deve observar-se como essa temática emerge dentro de um grupo politizado. Durante muito tempo, foi entendida não como estrutura hierárquica, perfeita, mas como “povo de Deus”. Nesse sentido todos são membros da Igreja e cada qual possui funções diferentes. Porém, a Igreja que se percebe e encontra-se na América Latina é semelhante àquela das origens: uma Igreja que nasce do povo e vive suas lutas. A Igreja no campo se faz presenta pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), na Floresta no Conselho Indigenista Missionária (CIMI), e nas cidades pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Estes setores eclesiais tornam-se o espaço do compromisso político, de conscientização crítica e lugar de democracia, que supera e/ou confronta a Igreja hierárquica em seu modelo romano clássico.
“Os pobres aqui não são compreendidos apenas como aqueles que possuem carências; eles as têm, mas possuem também força histórica, capacidade de mudança, potencial evangelizador. A Igreja acede a eles diretamente; não passa pela mediação do Estado ou das classes hegemônicas. Por isso aqui não se trata mais de uma Igreja para os pobres, mas de uma Igreja de pobres e com os pobres. A partir desta opção e inserção nos meios mais pobres e populares é que a Igreja define sua relação para com os demais estratos sociais. Ela não perde sua catolicidade; dá-lhe um conteúdo real e não retórico; dirige-se a todos, mas a partir dos pobres, de suas causas e de suas lutas. Daí ser a temática essencial desta Igreja a mudança social na direção da convivência mais justa, direitos humanos, interpretados como direitos das grandes maiorias pobres, justiça social, libertação integral, passando principalmente pelas libertações sócio-históricas, serviço concreto aos deserdados deste mundo etc” (BOFF, L, 1981, p. 26).
Esse tema eclesiológico tornou-se crucial na teologia da libertação, uma vez que o modelo adotado iria influir não só na nova reflexão teológica mas também nos rumos pastorais e políticos. A divergência de modelo eclesiástico será sentida ao longo do texto e dará uma das tônicas na guerra de posição. Os modelos de Igreja conservadora e progressista vão se chocar, numa disputa por hegemonia contínua. Esse modelo progressista, proposto e colocado em prática na América Latina e especialmente no Brasil, ganhou contornos especiais e originalidade.
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REIS, Egberto Pereira dos, ROTHEN José Carlos. O regime militar, os direitos humanos e a igreja (1972 – 1986) História e Cultura, v. 4, p. 27-49, 2015.