Apresentação do e-book Metamorfose Estatal

Aqui resgato a minha apresentação da minha tese de professor titular da UFSCar

Você sente que o mundo mudou, mas o Estado continua o mesmo? Pense de novo! O Estado que você conhece está em plena metamorfose. Mas para onde ele está indo?

Na busca desta resposta apresento o cerne de minha pesquisa que resultou na  minha tese de professor titular, agora disponível em formato de e-book, intitulado ‘O Estado em Metamorfose: Cruzamento da Reforma do Estado em Cuba, na França e no Brasil’.

Este trabalho dedica-se a uma investigação aprofundada da complexa transição que observamos nas estruturas estatais contemporâneas: o deslocamento de um Estado Administrativo – caracterizado por sua gestão hierárquica e burocrática – para um Estado em Rede, modelo mais descentralizado, flexível e interconectado. Em particular, analisei o impacto da Nova Gestão Pública (NGP) neste processo, observando-a em três contextos significativamente distintos: o setor da educação superior no Brasil e na França, e o processo de reforma do Estado cubano como um todo.

Objetivo

Nosso objetivo primordial é, portanto, desvendar essa transição do Estado Administrativo para o Estado em Rede, compreendendo suas múltiplas manifestações. Para tanto, a pesquisa foi estruturada em três linhas de investigação complementares, que se desdobram nos capítulos deste e-book:

  1. A primeira linha, enraizada na história da filosofia política, estabelece os fundamentos conceituais do que entendemos por Estado Administrativo e Estado em Rede, provendo a base teórica para nossa análise.
  2. A segunda, de caráter empírico, consiste em um estudo multicaso, onde comparamos as experiências de reforma do Estado no Brasil, na França e em Cuba, sempre com o foco na influência da Nova Gestão Pública.
  3. E, por fim, a terceira linha representa a síntese teórica, o cruzamento das análises das metamorfoses vivenciadas por Cuba, pelo Brasil e pela França, buscando extrair lições e compreensões mais amplas sobre o futuro do Estado.

Percurso da pesquisa

Agora, vamos  explorar o percurso que moldou esta pesquisa – mais de duas décadas de experiência que me impulsionaram a uma questão central: o que é o Estado e como ele realmente se organiza? A partir de uma metodologia que denominei, a ‘Epistemologia Política’, busquei desvendar as relações de poder e as verdades nos documentos oficiais. Sigamos adiante!”

Minha jornada acadêmica inclui um doutorado, concluído no ano 2000, sobre a reforma universitária de 1968. Posteriormente, atuei em instituições privadas, diretamente envolvidas com os marcos avaliativos como o Provão e o ENADE. Minhas pesquisas se estenderam ao âmbito da Rede Universitas e culminaram em um pós-doutorado na França, com o valioso apoio da CAPES, período em que aprofundei meus estudos sobre a Nova Gestão Pública. De volta ao Brasil estudei a Nova Gestão Pública no programa REUNI. Mais recentemente, minhas investigações se voltaram também para o Estado Cubano e seus modelos de gestão. Com o apoio da FAPESP

Ao longo de todo esse processo investigativo, uma questão central permaneceu como pano de fundo e força motriz: o que é o Estado? Podemos, de fato, falar em um tipo único de Estado, ou devemos reconhecer as inúmeras manifestações históricas e sociais que o caracterizam? Na busca por essa compreensão fundamental, este e-book dedica-se a explorar conceitualmente a compreensão e a dinâmica do Estado.

Metodologia

Do ponto de vista metodológico, a espinha dorsal deste trabalho reside em uma técnica que desenvolvi durante meus estudos de doutorado, a qual denominei ‘Epistemologia Política’. Essencialmente, esta abordagem baseia-se na análise aprofundada de documentos oficiais para desvendar as relações de poder subjacentes, as ideologias dominantes e os ‘regimes de verdade’ que são construídos e legitimados através do discurso.

Em suma, trata-se de uma análise do discurso expresso em documentos oficiais.

As fontes primárias que embasaram este estudo incluem um vasto repertório de documentos oficiais, tais como leis, decretos, relatórios governamentais, discursos de líderes e constituições. Complementarmente, a literatura especializada foi fundamental para contextualizar e aprofundar a compreensão de cada um dos cenários analisados

Com o caminho traçado e as ferramentas de análise apresentadas, estamos prontos para mergulhar nos resultados da pesquisa.

 

Fundamentação teórica

Iniciamos pela primeira linha de investigação do e-book: a fundamentação teórica.

Agora faremos uma imersão conceitual profunda que nos permitirá construir o alicerce para a análise das metamorfoses estatais.

 

 

Autores contratualistas

No capítulo dedicado aos autores contratualistas, como Hobbes, Locke e Rousseau, exploramos a sua imensa contribuição para a compreensão do conceito de poder. A grande sacada desses pensadores é a ideia de que o Estado é uma construção humana, forjada a partir de um contrato social. Isso muda tudo!

Questões como a legitimidade do poder e a complexa relação entre o Estado, o indivíduo e a sociedade são centrais nessa análise. Eles também mergulham no papel da propriedade privada: para Locke, ela é uma fonte de igualdade, fruto do trabalho; já para Rousseau, a propriedade é vista como a origem da desigualdade social. Além disso, a noção de bem comum permeia suas obras, discutindo-se a segurança, os direitos naturais e a vontade geral, ainda que com abordagens distintas entre eles.

Em essência, a contribuição fundamental dos contratualistas para a nossa tese é a concepção do Estado como o centro regulador das relações de poder, cujo principal objetivo deveria ser a busca pelo bem comum.”

O Estado político

Avançando em nossa análise do Estado, o e-book mergulha na perspectiva marxista-leninista, que nos revela uma dualidade estrutural fundamental em sua constituição.

Por um lado, temos uma dimensão política, primariamente focada na manutenção do poder e da ordem social. Por outro, surge uma dimensão administrativa, intrinsecamente ligada à gestão da produção e à reprodução social.

Sob essa ótica, o Estado é compreendido não como uma entidade abstrata, mas como uma criação histórica, intimamente vinculada ao modo de produção e às relações de poder inerentes a cada sistema econômico.

A dimensão política, nesse contexto, é caracterizada pelo controle, muitas vezes coercitivo, dos conflitos de classe. No sistema capitalista, isso se manifesta na repressão à classe trabalhadora e na proteção dos interesses da burguesia, consolidando a dominação da classe economicamente dominante.

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O A teoria do valor e o Estado Administrativo

Para compreender o Estado Administrativo, recorremos à teoria do valor e à análise dos custos de produção na perspectiva marxista-leninista. Identificamos dois tipos de custos: os custos diretos da produção, referentes aos meios de produção consumidos (máquinas, insumos etc.) e à expansão da produção; e os custos relativos à reprodução e manutenção da sociedade, que incluem os custos administrativos, as necessidades coletivas (educação, saúde etc.) e o amparo social. No Estado Administrativo, a estrutura estatal desempenha um papel central na reprodução social, administrando bens, assegurando a seguridade social e planejando a produção, incorporando esses dois tipos de custos em sua atuação.

Slide 8 A administração clássica e o Estado Administrativo

Considerando a sugestão de Marx sobre a organização da empresa capitalista como a estrutura histórica mais avançada, nossa análise da organização do Estado Administrativo se baseia na Administração Clássica e nas contribuições de Weber. A Administração Científica de Taylor e a abordagem de Fayol destacam a divisão do trabalho, a especialização, a hierarquia, o controle e a busca incessante por eficiência e produtividade. Weber identifica a burocracia como elemento estrutural do Estado moderno, associando-a à dominação legal-racional, profissionalização, impessoalidade e ênfase no processo.

A crítica neoliberal

Após consolidarmos a compreensão do Estado Administrativo em sua dimensão teórica, este segmento marca uma virada em nossa análise. Mergulharemos agora na complexa transição para o Estado em Rede, desvendando as forças que a impulsionam e as lógicas que a sustentam.

Passamos a bordar um conjunto interligado de conceitos fundamentais:

  1. crítica neoliberale a ascensão da Nova Gestão Pública (NGP), que moldam as novas formas de gestão e governança.
  2. A perspectiva da Teoria Ator-Rede, essencial para entender a complexidade e a fragmentação do poder no cenário contemporâneo.
  3. Aprofundaremos nas bases ideológicasdessa metamorfose, explorando a hegemonia de Gramsci e o espírito do capitalismo de Boltanski e Chiapello, para compreender como a lógica neoliberal se consolida e se legitima.
  4. E, finalmente, expandiremos nossa análise para a esfera global com o conceito de Novo Imperialismo de David Harvey, focando na relação entre as crises de sobreacumulação do capital, a acumulação por espoliação e como essa dinâmica se articula com a emergência e o funcionamento do Estado em Rede.

Preparem-se para um panorama abrangente das forças que moldam o Estado contemporâneo!”

A transição do Estado Administrativo se insere no contexto da crítica neoliberal a este modelo e na análise da transformação do capitalismo sob o prisma das críticas que podemos chamar de progressistas ao capitalismo, como nos indicam Boltanski e Chiapello, culminando na emergência da Nova Gestão Pública (NGP). Essa transição envolveu mudanças no poder (descentralização), nas políticas públicas (privatizações) e na gestão (ênfase em resultados e accountability).

A crítica neoliberal, segundo Bezes (2009), aponta para cinco argumentos principais contra o Estado Administrativo: excesso de gastos, ineficiência, incapacidade de atender às demandas sociais, falta de transparência e o impacto transformador da internet.

Ator rede

A NGP, por sua vez, se caracteriza por princípios organizacionais como a separação de funções, a fragmentação da burocracia, a incorporação de mecanismos de mercado, a transformação da hierarquia e a gestão por resultados, baseada no paradigma da eficiência, transparência e responsabilização. Finalmente, a perspectiva ator-rede (Latour) concebe o Estado como uma rede complexa e heterogênea de atores interdependentes, marcada por conflitos e pela interação entre indivíduos, grupos e instituições. O Estado perde a centralidade das ações.

Hegemonia e Espírito do Capitalismo

Propomos que a construção ideológica que sustenta o Estado em Rede seja vista por meio de duas lentes conceituais: a hegemonia gramsciana e o espírito do capitalismo como descrito por Boltanski e Chiapello. Embora distintas, ambas as perspectivas oferecem uma compreensão de como a lógica neoliberal se consolida e se legitima.

A hegemonia gramsciana, transcendo a mera coerção, opera através da construção de um consenso ideológico. A classe dominante impõe sua visão de mundo, fazendo com que a classe subordinada aceite a ordem estabelecida como natural. No contexto do Estado em Rede, essa hegemonia se manifesta na aceitação da lógica neoliberal.

Complementando a análise da hegemonia, o conceito de “espírito do capitalismo”. Boltanski & Chiapello identificam um conjunto de crenças que justificam o engajamento nesse sistema. A “cidade por projeto” – caracterizada por mobilidade, conectividade, competição, adaptação e autonomia – representa um novo espírito do capitalismo, legitimando as estruturas e práticas do Estado em Rede.

Embora distintas em sua abordagem, a hegemonia e o espírito do capitalismo se complementam na compreensão do Estado em Rede. A hegemonia explica a imposição da lógica neoliberal como consenso, enquanto o espírito do capitalismo revela os princípios que justificam a participação neste sistema. Ambos destacam a construção ideológica que sustenta a ordem neoliberal.

Novo imperialismo

A partir do conceito de novo imperialismo de David Harvey, relaciono  a  inter-relação entre crises de sobreacumulação, acumulação por espoliação e o surgimento do Estado em Rede. Harvey demonstra como a financeirização e a globalização reconfiguram as relações de poder internacionais.

Harvey argumenta que o capitalismo é inerentemente sujeito a crises cíclicas de sobreacumulação, onde o capital excede a capacidade de investimento rentável na produção. Essa condição impulsiona a busca por novas formas de acumulação, frequentemente via espoliação.

A acumulação por espoliação, estratégia para solucionar crises de sobreacumulação, envolve a apropriação de recursos e riquezas de países periféricos sem justa compensação, exacerbando as desigualdades globais. Privatizações predatórias e a exploração de recursos naturais são exemplos dessa prática.

O Estado em Rede, com sua fragmentação e crescente influência de atores não estatais, facilita a acumulação por espoliação. Organismos internacionais como o FMI e o Banco Mundial, ao imporem políticas que favorecem a livre circulação de capitais e a privatização de ativos públicos, contribuem para a expropriação de riquezas em países periféricos.

Em conclusão, a profunda articulação entre crises de sobreacumulação, acumulação por espoliação e o Estado em Rede. Essa dinâmica intensifica a desigualdade global e questiona a sustentabilidade do capitalismo atual.

Estado administrativo x Estado em Rede

Passo agora fazer algumas aproximações entre o Estado administrativo e o Estado em rede

Territorialidade e poder coercitivo

O Estado Administrativo possui uma territorialidade bem definida e um poder coercitivo centralizado em instituições tradicionais (polícia, judiciário). Já o Estado em Rede apresenta fronteiras mais fluidas e um poder mais fragmentado, distribuído entre diferentes órgãos e atores.

 

Manutenção do Estado e o Corpo Burocrático

Ambos os modelos exigem recursos para sua manutenção, porém, a forma de aquisição difere significativamente. O Estado Administrativo depende principalmente de impostos, enquanto o Estado em Rede diversifica suas fontes, incluindo parcerias público-privadas e recursos internacionais. A burocracia também é organizada de forma diferente: hierárquica e centralizada no Estado Administrativo; descentralizada e com agências autônomas no Estado em Rede.

Multiplicidade de Atores e Autonomia

O Estado Administrativo concentra a ação em torno de um núcleo central. O Estado em Rede, ao contrário, se caracteriza pela diversidade de atores (órgãos estatais, agências, organismos internacionais, empresas, ONGs), com graus variados de autonomia regulada. A ênfase muda da subordinação para a conectividade.

Gestão e tecnocracia

A gestão no Estado Administrativo foca nos processos administrativos e produtivos. No Estado em Rede, a ênfase muda para a gestão por resultados, com metas, indicadores de desempenho e avaliações periódicas. A tecnocracia também muda de caráter: burocrática e centralizada no Estado Administrativo; mais difusa e baseada em especialistas em agências no Estado em Rede.

Bens Sociais e Seguridade Social

A provisão de bens sociais (educação, saúde) e a garantia da seguridade social eram responsabilidades centrais do Estado Administrativo.

No Estado em Rede, os bens sociais e a seguridade sofre forte influência da lógica de mercado, com privatizações, parcerias público-privadas e uma crescente responsabilização individual. Isso pode levar a uma precarização dos serviços e ao aumento da desigualdade.

Os estudos de caso múltiplo

Após construirmos toda a nossa fundamentação teórica sobre o Estado Administrativo, o Estado em Rede e as forças que os moldam, é hora de aplicarmos nossas lentes analíticas aos estudos de caso. Veremos três metamorfose a cubana, a brasileira e a francesa.

Metamorfose Cubana

“O capítulo dedicado à Metamorfose Cubana investiga a complexa reforma do Estado, analisada a partir dos Congressos do Partido Comunista de Cuba (PCC) entre 1975 e 2021. Nosso objetivo é reconstruir o movimento histórico do Estado cubano, identificando as convergências e divergências com os princípios da Nova Gestão Pública (NGP), em contraste com os modelos neoliberais implementados em contextos capitalistas.

A análise revela a centralidade da teoria marxista-leninista, que concebe o Estado socialista como uma fase de transição para o comunismo. Em Cuba, isso se traduziu em um Estado com estrutura dual: uma dimensão política, dedicada à ditadura do proletariado, e uma dimensão administrativa, focada na organização da produção e das estruturas sociais, com propriedade social dos meios de produção e priorização das necessidades da classe trabalhadora.

Classificamos a trajetória dos oito Congressos do PCC em quatro fases distintas:

  1. A Fase do Otimismo Revolucionário (I ao III Congressos): Este período institucionalizou o Estado Administrativo socialista, com planificação centralizada e propriedade estatal, sob a liderança do PCC. Ferramentas da administração empresarial capitalista foram adotadas, mas sempre dentro de uma lógica socialista, como a planificação quinquenal e o controle de qualidade.
  2. A Reestruturação do Estado Cubano (Conclusão do III e IV Congresso): Marcada pela queda da URSS em 1991 e a subsequente crise econômica, essa fase impulsionou a ‘Retificação dos Erros’. Houve uma reavaliação crítica do modelo de planificação, reconhecendo a necessidade de maior eficiência e ressignificando o socialismo como uma opção política, não uma determinação histórica.
  3. A Reforma do Estado Cubano (V e VI Congressos): Observamos a partir daqui uma descentralização econômica, abertura ao investimento estrangeiro e diversificação da propriedade. A adoção da ‘Direção por Objetivos’ refletiu o desafio de conciliar a lógica de mercado com os princípios socialistas, sem recorrer às ‘terapias de choque’ neoliberais. A educação, ciência e tecnologia mantiveram-se como prioridades.
  4. A Teorização da Reforma e a Transição Geracional (VII e VIII Congressos): A elaboração da ‘Conceptualización del Modelo Económico y Social Cubano de Desarrollo Socialista’ representou um esforço de teorização da reforma, em um contexto de transição na liderança. Cuba continuou buscando um modelo que concilie os princípios socialistas com as realidades do mercado global, incorporando elementos de meritocracia e a conciliação entre planificação centralizada e forças de mercado, ao mesmo tempo em que rechaça medidas neoliberais drásticas e mantém a responsabilidade estatal pela oferta de bens sociais.

Em suma, a metamorfose cubana demonstra uma complexa hibridização, evidenciando a capacidade de adaptação de um Estado socialista frente às pressões e desafios globais.”

A trajetória cubana nos revela uma fascinante hibridização e adaptação. Agora, passamos para outro cenário com sua própria complexidade histórica.  Video 6

A metamorfose francesa

Aqui, exploraremos a peculiar transição do Estado Administrativo para o Estado em Rede no ensino superior francês. Observaremos como a forte herança napoleônica, com sua burocratização e centralização enraizadas na soberania estatal, moldou profundamente a educação superior – caracterizada por intenso controle estatal, padronização e hierarquia – e como essa estrutura se encontra e se adapta aos princípios da Nova Gestão Pública

 

Herança napoleônica

Universidade Imperial, criada por Napoleão, consolidou esse modelo, submetendo a universidade ao Estado em currículo, financiamento e gestão. Estruturou-se em três pilares: universidades (foco humanístico), ‘Grandes Écoles’ (formação tecnológica e profissional) e centros de pesquisa – uma clara expressão do Estado Administrativo.

As revoltas estudantis de 1968.

Após a Segunda Guerra Mundial, a manutenção dessa estrutura gerou tensões, culminando nas revoltas de 1968. A Lei Fouchet, embora promovesse alguma reestruturação, não rompeu com a lógica do Estado Administrativo, sendo insuficiente para atender às demandas por uma universidade mais democrática.

Adoção da Nova Gestão Pública

A partir dos anos 1980, a França adotou gradualmente princípios do Estado em Rede e da Nova Gestão Pública: contratualização (contratos entre o Estado e a Universidade), autonomia regulada, ênfase na competitividade e gestão por resultados. Essa transição enfrentou resistências.

O Processo de Bolonha, que cria o espaço europeu de educação superior, (final dos anos 1990) exemplifica o Estado em Rede, com diversos atores interagindo: ministros, reitores, especialistas e acadêmicos. A conectividade, crucial neste processo, implica na adesão a padrões comuns . Apesar da aparente voluntariedade, a adesão se torna essencial para a integração ao sistema europeu de educação superior.

Competividade ranqueamento

Nos anos 2000, a intensificação da transição foi impulsionada pelos rankings internacionais e pela agenda de Lisboa, que propunha uma economia do conhecimento, ambos alinhados à lógica neoliberal de competição. As reformas visaram superar a “divisão tripartite”, aproximando as universidades do setor produtivo e adaptando-as à NGP, com ênfase na autonomia, gestão por resultados e competitividade.

A transição francesa combina planejamento centralizado com práticas de descentralização, criando agências autônomas e incentivando a competição. Essa hibridização, no entanto, é motivada pela busca de competitividade internacional, em consonância com a lógica neoliberal, e não por ideais de bem comum, contudo sem abandonar a ideia de bem comum.

Competitividade global

A universidade, antes “diluída” no Estado, se reestrutura para a competição global. O modelo, embora aparentemente inclusivo ao garantir acesso universal à licenciatura, revela-se excludente na prática, reforçando a meritocracia e as desigualdades sociais. A França resiste, contudo, à privatização completa do ensino superior.

Em síntese, a transição francesa representa uma complexa reconfiguração, combinando a busca por eficiência e competitividade com a tradição estatal e a resistência à mercantilização completa da educação. Há uma transição dos ideais republicanos para uma ênfase na excelência e competitividade, sem o abandono completo dos valores republicanos.

“A experiência francesa demonstra uma adaptação gradual e multifacetada.

A metamorfose brasileira

Agora nos dedicamos à Metamorfose Brasileira! Após explorar os cenários de Cuba e França, é o momento de focarmos em nossa própria realidade. Analisaremos a complexa transição do ensino superior no Brasil, destacando a hibridização entre a lógica estatal tradicional e a influência neoliberal, sem uma simples substituição de modelos, e as profundas contradições dessa jornada desde os anos 1930

Os primórdios da educação superior brasileira (até 1930), marcados pela chegada da Família Real e a posterior influência positivista, enfatizaram a ciência aplicada, a especialização e a formação profissionalizante vinculada às necessidades do Estado.

Anos 1930

Nos anos 1930, os decretos de Francisco Campos, e a criação da Universidade do Brasil (modelo centralizado) focaram na formação profissional e na integração de pesquisa e ensino, com a expansão de instituições confessionais privadas.

Nacional desenvolvimentismo

O Estado Administrativo (décadas de 1930-1960) implementou um planejamento centralizado, impulsionando a industrialização por substituição de importações através do nacional-desenvolvimentismo e do Plano de Metas. Apesar dos sucessos, limitações como a dependência tecnológica e desequilíbrios econômicos persistiram. A intervenção direta do Estado na economia (infraestrutura, empresas estatais) foi marcante.

Tecnocracia Militar

A ditadura militar (décadas de 1964-1980) caracterizou-se por um planejamento tecnocrático e abertura ao capital estrangeiro. Apesar do crescimento econômico, a dependência tecnológica e as contradições entre crescimento e desenvolvimento autônomo se acentuaram. A criação de empresas estatais coexistiu com a abertura ao capital estrangeiro.

A Reforma Universitária de 1968, no contexto da ditadura militar, impôs uma lógica tecnocrática e a instrumentalização da educação para o desenvolvimento econômico, com influência do modelo estadunidense (créditos, pós-graduação).

A década de 1970 assistiu ao crescimento acelerado de instituições privadas, especialmente faculdades isoladas com cursos de rápida absorção no mercado de trabalho. A tensão entre demanda social e lógica mercantil é marcante.

A redemocratização

A redemocratização e a Constituição de 1988 previram a autonomia universitária e a abertura para a iniciativa privada, gerando tensões entre diferentes concepções de autonomia. Para o movimento dos professores a autonomia representava uma república dos professores, no caso das Universidade Paulistas, como autonomia dos reitores, para o setor privado, autonomia para o fornecimento da mercadoria educação.

Reforma do Estado

Na década de 1990, o neoliberalismo e o Consenso de Washington influenciaram o Brasil. A Nova Gestão Pública (NGP), com avaliações de desempenho (Provão, rankings), contratos de gestão e expansão do ensino superior privado, se destacou. A LDB de 1996 flexibilizou a regulamentação do setor. A transição para o Estado em Rede acelerou-se, com privatizações, desregulamentação e o afastamento do Estado da produção direta, priorizando a estabilidade econômica. Apesar da manutenção da estrutura do Estado Administrativo (MEC, Capes, CNPq, Finep), incorporaram-se elementos do Estado em Rede, com controle à distância por avaliações e terceirização. A ênfase em resultados mensuráveis, compra de vagas privadas e focalização em grupos específicos demonstra influência neoliberal, enquanto a permanência de instituições como o MEC indica a continuidade de características do Estado Administrativo. A mercantilização do ensino superior, impulsionada pela sobreacumulação de capital, caracteriza essa complexa transição.

Neoliberalismo social

Os governos Lula e Dilma (2003-2016) implementaram políticas sociais no ensino superior, como o Prouni e as cotas sociais e raciais, para combater desigualdades. Programas de permanência estudantil e financiamento também foram criados. Contudo, a compra de vagas no setor privado expôs uma contradição: a coexistência de políticas inclusivas com uma lógica neoliberal de gestão, mercantilizando a educação e reforçando desigualdades. A expansão do ensino superior público, via REUNI, ocorreu em um contexto de contratos de gestão que priorizavam eficiência e mensuração de resultados. Essa estratégia pode ser interpretada como um “neoliberalismo social” ou, ironicamente, como um neoliberalismo de esquerda.

A transição brasileira não resultou na substituição completa do Estado Administrativo por um modelo puramente neoliberal. A hibridização de lógicas gerou tensões entre inclusão social e os imperativos de eficiência e mercado. A mercantilização da educação, a competição entre instituições e a desresponsabilização do Estado são impactos negativos dessa transição. Superar esses desafios requer uma reflexão crítica sobre o papel do Estado e a necessidade de políticas públicas que priorizem a qualidade e o acesso universal à educação. O planejamento estratégico, exemplificado pelo PDE e REUNI, buscou conciliar crescimento econômico e inclusão social, mas a compra de vagas em instituições privadas demonstra a persistência de práticas neoliberais. Em suma, a combinação de crescimento econômico e inclusão social, sob a influência de diferentes modelos de Estado, gerou resultados complexos e contraditórios para o desenvolvimento econômico e social brasileiro.

A jornada brasileira nos revela um cenário de tensões e hibridização constante.

E, assim, chegamos à reta final da nossa série de vídeos sobre o e-book. No próximo e último segmento, faremos uma síntese comparativa das metamorfoses estatais em Cuba, França e Brasil, destacando as convergências e divergências e as implicações dessas transformações para o futuro do Estado. Não perca a conclusão!”

Cruzamentos

Chegamos ao derradeiro capítulo da nossa caminhada pelo e-book ‘O Estado em Metamorfose’. Após aprofundarmos nas especificidades de Cuba, França e Brasil, este vídeo final dedica-se à síntese comparativa das metamorfoses estatais. Analisaremos as convergências e divergências observadas, as complexas hibridizações entre o Estado Administrativo e o Estado em Rede, e as implicações dessas transformações para o futuro da gestão pública e da justiça social. Uma reflexão conclusiva sobre o panorama global do Estado contemporâneo

O Estado Administrativo se caracteriza pela centralização do poder e pela gestão burocrática de bens produzidos socialmente, tanto de apropriação privada quanto social. As variações históricas e ideológicas são importantes.

Em Cuba, o Estado Administrativo se expressou na planificação centralizada; na França, em um forte intervencionismo estatal; e no Brasil, no desenvolvimentismo. As diferenças em termos de sistema político, ideologia e nível de centralização são significativas.

O Estado em Rede se caracteriza pela fragmentação do poder, crescente participação de atores não-estatais, conectividade e a Nova Gestão Pública (NGP), com gestão por resultados, contratualização e controle à distância.

As abordagens à privatizaçãodesestatização diferiram significativamente: desestatização controlada em Cuba, reformas graduais na França e expansão do setor privado no Brasil, refletindo diferenças ideológicas e históricas.

A conectividade também se manifestou de formas distintas: cooperação internacional em Cuba, integração europeia na França e competição de mercado no Brasil.

A hibridização de modelos de gestão é evidente: a transição da gestão burocrática para a Nova Gestão Pública, com diferentes ênfases (processos vs. resultados), ocorreu de forma heterogênea nos três países.

As políticas sociais também variaram: políticas universais em Cuba e políticas focais na França e no Brasil, com a mercantilização da educação sendo mais acentuada no Brasil.

A economia do conhecimento teve impactos diferentes: em Cuba, como ferramenta para objetivos socialistas; na França, para aumentar a competitividade internacional; e no Brasil, de forma ambígua, combinando desenvolvimento e dependência tecnológica.

Chegamos ao fim desta jornada, e para concluir, retorno à pergunta que me acompanhou ao longo de toda a pesquisa: ‘O que é o Estado?’

Não há uma definição única e estática. O Estado é uma instituição histórica, com fronteiras e poder centralizado, mas sua natureza é intrinsecamente contraditória. Ele busca o bem comum, regulando as relações sociais, mas também serve como instrumento de dominação de classe, refletindo os interesses dominantes de cada modo de produção. Sua essência é gerir e reproduzir a ordem social, utilizando tanto mecanismos de manutenção e reprodução – como políticas sociais e infraestrutura – quanto de repressão, cuja intensidade varia historicamente.

Os diferentes tipos de Estado que exploramos – do Estado Administrativo ao Estado em Rede – distinguem-se justamente pela forma como regulam, pela atuação dos atores sociais, pela intensidade da repressão e pelos dispositivos de oferta dos serviços públicos em busca desse bem comum.

Este e-book, ‘O Estado em Metamorfose’, não oferece uma resposta definitiva, mas sim um ponto de partida essencial para aprofundar sua própria compreensão sobre esta instituição fundamental.

 Aos poucos irei gravar vídeos aprofundando cada um dos capítulos

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